(arte de Kat Verhoeven)
Essa é uma série dividida em 5 partes sobre a espiritualidade feminina e as origens da religião da Deusa, baseadas no livro "Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas", de Mirella Faur.
Leia aqui a primeira parte, a segunda aqui, a terceira aqui e a quarta aqui.
Chegamos à última parte!
O Despertar das Mulheres para A Deusa
"Mulher eu sou, espírito eu sou,
tenho o infinito dentro de mim,
não tenho começo e não tenho fim, eu sou assim"
(Canção dos círculos de mulheres norte-americanas)
Por meio de livros, palestras, imagens, sonhos, visões, meditações e diálogos com outras mulheres, participação em rituais, contato profundo com a Natureza, experiências místicas, lembranças espontâneas, terapias de renascimento ou regressão são ativados e trazidos à mente consciente os antigos registros de existências anteriores em que a Deusa era cultuada. Uma vez despertadas essas memórias ancestrais e estabelecida a conexão com a lembrança adormecida do primeiro impulso religioso humano centrado em uma Mãe Criadora, dificilmente a mulher abandonará esse caminho, que a levará de volta para a verdadeira fonte divina e ao encontro de si mesma. Em contraste com a figura de um deus velho, barbudo e sisudo, aparecendo entre as nuvens, as imagens tocantes da Deusa são telúricas e cósmicas, maternais e carnais, evocando a sacralidade e fertilidade da Natureza e da figura feminina. Mais do que histórias, mitos ou palavras, as estatuetas e as imagens das deusas paleolíticas e neolíticas trazem à tona memórias ancestrais de participação em cultos que reconheciam e reverenciavam o poder feminino - divino e humano. Sem corresponder aos cânones da beleza contemporânea, a representação do corpo das antigas deusas realça a capacidade criadora e nutriz da mulher, dom intrínseco e inato que independe da idade ou da perfeição física.
A Deusa era o símbolo da unidade de toda a vida e da Natureza, respeitada e venerada como algo sagrado e misterioso, presente em tudo: na água e na terra, nas grutas e montanhas, nos animais, peixes e pássaros, nas árvores e flores, nas estrelas e no vento, nos homens, nas mulheres e nas crianças. As antigas imagens da Deusa têm inspirado e conduzido as vivências da sacralidade feminina no movimento contemporâneo do "retorno à Deusa". É importante que voltemos a visualizar a Fonte Criadora como Deusa e Mãe amorosa, falando sempre o seu nome, para romper os padrões enraizados na nossa mente de um deus e pai dominador, que vê e julga os nossos atos, punindo as transgressões humanas, conforme relata a bíblia
Segundo Carol Christ, autora de Rebirth of the Goddess (Renascimento da Deusa), "As imagens e invocações da Deusa acabam com o controle masculino que formou os nossos conceitos, não somente de deus, mas de todo o poder universal". Os vislumbres intuitivos sobre a Deusa podem ser repentinos, mas também podem levar um tempo para mudar nossos paradigmas, pois precisam ser assimilados pela nossa mente e vividos e expressos nas nossas atitudes e ações. Contudo, para manifestar seu poder nas nossas vidas, além de imagens e mitos, precisamos de rituais, que criam novas formas de expressão e motivação, reencenando antigas práticas e criando altares como pontos de força e atração da presença da Deusa. A experiência é fundamental para a ampliação da consciência e a reconexão com os arquétipos e símbolos da Deusa.
O renascimento e a divulgação dos conceitos e valores da espiritualidade feminina levaram ao surgimento de núcleos revisionistas no seio das religiões convencionais, visando enfoques mais abrangentes que aceitassem "a face feminina de Deus". Em algumas igrejas protestantes americanas, as orações estão sendo agora dirigidas ao Deus Pai-Mãe; no judaísmo há uma ênfase maior na reverência a Shekinah, a consorte oculta de Jeová (herdeira das deusas de Canaã Asherah e Anath), enquanto a igreja ortodoxa intensifica o culto de Maria como Theotokus, a Mãe Divina. No catolicismo, as aparições "marianas", a valorização crescente das Madonas Negras e as peregrinações às suas basílicas estão realçando a importância da reverência a Maria e o fervor renovado da antiga fé. O teólogo dominicano Matthew Fox postula o conceito de Deus como Mãe e Filho e aponta a responsabilidade dos homens para desenvolver "a mãe interior", que simboliza o dom da criatividade e nutrição. Sua proposta coincide com uma das definições da espiritualidade feminina como "o caminho que desenvolve as qualidades nutrizes e protetores latentes em mulheres e homens, o amor manifestado na realidade". A freira católica Meinrad Craighead - pintora mística e visionária - expressa suas visões da Mãe Divina em quadros de extraordinária beleza, repletos de símbolos da Deusa, com cores e texturas da terra, acompanhados por poemas permeados de significados e elementos cósmicos e telúricos, que retratam o fluxo eterno da criação divina.
O movimento espiritual e cultural denominado O Retorno da Deusa também exerce a influência na arte feminina, ampliando a inspiração pela contemplação de imagens das deusas pré-históricas, pela conscientização e expressão da riqueza das formas femininas e pelo abandono da rigidez dos padrões convencionais. A extensa e variada temática e simbologia feminina estão sendo refletidas na literatura e arte contemporâneas, nos poemas, nas músicas e canções, em quadros e esculturas, cerâmicas, tecelagem e adornos, nas danças sagradas ou nas encenações teatrais. Muitas artistas recriaram a antiga iconografia em formas modernas, outras usaram seus próprios rostos ou corpos em quadros, máscaras, desenhos ou esculturas representando a Deusa, redescobrindo e celebrando sua própria essência divina. Os antigos símbolos da Deusa são poderosos auxílios para as mulheres nos seus momentos de dúvidas ou conflitos, na compreensão dos sonhos, nas suas terapias e vivências. O respeito pelo corpo feminino, como fonte de poder, saúde, prazer, beleza e arquivo de experiências passadas, em muito contribuiu para que as mulheres aceitassem e afirmassem suas verdadeiras identidades, redescobrindo que o corpo físico é a manifestação da força vital criativa, com atributos inerentes à sua essência e um elo de ligação com a Mãe Natureza.
(arte de moosekleenex)
A Consciência de Gaia
A consciência de Gaia é um movimento global para a cura do planeta que se manifesta de várias formas, visando aumentar a responsabilidade humana pela preservação da Terra, cada vez mais ameaçada pela poluição e degradação ambientais, bem como pela cobiça, a exploração desenfreada e a violência. Ela surgiu aos poucos, de iniciativas individuais e grupais, depois que as fotografias da Terra vistas do espaço - aparecendo como um lindo globo azul, cercado de nuvens, de extrema beleza e vulnerabilidade - tocaram o coração de muitas pessoas.
Em 1971, os cientistas James Lovelock e Lyn Margulis, criaram a hipótese Gaia, que considera a Terra como uma estrutura complexa e viva, autorregulável, em que a interdependência de todas as formas de vida, junto com o solo, os oceanos e a atmosfera, formam um único sistema vivo. A Hipótese Gaia reconhece o planeta Terra como uma entidade inteligente do Universo e a nossa íntima relação com toda a criação por meio de uma energia sutil que liga todos os seres vivos. Reavivando o antigo conceito de "teia cósmica" e usando o nome da Mãe Terra grega - Gaia - como metáfora da teoria, a validação científica de uma verdade milenar catalisou a formação de uma nova mentalidade e de movimentos chamados "gaianismo". A Consciência de Gaia é a solução necessária e adequada para contrabalançar os conceitos mecanicistas atuais, que dicotomizam o homem e a Natureza, a razão e a emoção, a matéria e o espírito e que destruíram a antiga reverência e o respeito do homem pelas energias naturais; antes vistas como personificações da Fonte Divina.
Movimentos como o Gaianismo, a Consciência de Gaia e o Greenpeace, organizações para a preservação dos ecossistemas, a proposta de "O Milionésimo Círculo", a organização Gather the Women, as conferências e encontros internacionais de mulheres e fundações como a Women's World Summit Foundation são exemplos de como a Deusa Mãe e Mestra - nos convoca e pede nossa ajuda. Ainda existem outros incentivos, como as marchas das mulheres, as ligas, os grupos e as listas da internet, que convidam mulheres do mundo inteiro para projetos, publicações e eventos que beneficiem e fortaleçam as mulheres nas suas aspirações, necessidades e objetivos.
A escritora terapeuta Jean Shinoda Bolen expressou de forma tocante e precisa essa nova realidade global no título do seu mais recente livro "Urgent Message From Mother: Gather the Women, Save the World" (Mensagem Urgente da Mãe: Reúnam as Mulheres, Salvem o Mundo).
O retorno à Deusa é o prenúncio do surgimento de uma nova consciência que vê a humanidade como parte do Todo, da Natureza e do cosmos, e aceita a sacralidade da vida e a imanência do divino. O mistério da Deusa é o mistério do nosso próprio ser, a força vital dinâmica, a dança da vida e dos ciclos naturais, a canção eterna da criação, destruição e regeneração. A Terra é viva, é a própria Deusa, que sustenta e nutre todos os seres e os abriga no seu corpo. Ao trilharmos o caminho da Deusa, iremos relembrar que não há separação, apenas unidade; a matéria é permeada pelo espírito e todos nós somos responsáveis por tudo o que é vivo.
A escritora Ellinor Gadon, em seu livro "The Once and Future Goddess" define a Deusa como: "a guardiã da fonte interior, da conexão e orientação espiritual, a divindade existente em todos nós, manifestada como a nossa consciência autêntica, o centro transpessoal chamado Eu Divino".
A Deusa é o símbolo da cura necessária para a nossa sobrevivência; da pacificação entre homens e mulheres; povos e nações; da expansão da consciência que irá garantir a renovação social, política, cultural e espiritual da humanidade. Sem precisar voltar para as estruturas e comportamentos pré-históricos, podemos usufruir a sabedoria antiga, dos cultos e rituais que honravam e celebravam a vida, a Terra, a sacralidade do útero. Precisamos apenas abrir nossa mente e coração para fazer bom uso das riquezas naturais e agradecer por tudo o que a vida e a Deusa nos ofereceram para a nossa existência.
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