27/05/2016

[A Espiritualidade Feminina] A Tradição da Deusa #1

(fotografia por indinell)


Todas nós viemos da Deusa
e a Ela retornaremos
Como gotas de chuva
Fluindo para o oceano.
(Canção de Zsuzsana Budapest)


A Tradição da Deusa

Um dos mais marcantes fenômenos do século XX foi o renascimento da religião da Deusa na cultura ocidental. Presente desde tempos imemoriáveis em todas as civilizações antigas, o princípio sagrado feminino personificado em múltiplas facetas e arquétipos da Grande Mãe foi eclipsado, depois renegado e aos poucos ocultado pelos conceitos e dogmas das religiões patriarcais. Existem atualmente várias religiões e caminhos espirituais tradicionais e modernos, mas eles são desprovidos de tradições sagradas para mulheres, e alguns chegam até mesmo a promover e defender "incontestáveis" autoridade e supremacia masculina.
Apesar do ocultamento, a Tradição da Deusa não chegou a desaparecer totalmente; ela seguiu um ciclo de ascensão, florescimento e declínio devido às transformações sociais e culturais ocorridas nos últimos 4.000 anos. Seus registros, no entanto, permaneceram nas memórias ancestrais, no inconsciente coletivo, nos costumes populares e nos contos de fadas. Muitas das tradições pré-cristãs, dos rituais pagãos de comemoração da Roda do Ano e dos ritos de passagem da vida humana foram absorvidos pelo cristianismo, que edificou suas igrejas nas ruínas dos antigos templos das deusas greco-romanas, celtas e nórdicas. A sabedoria ancestral foi "codificada" e ocultada em mitos e lendas, práticas nativas, ensinamentos das escolas de mistérios, arcanos do tarô, tradições populares e ditas "superstições".

A partir da década de 60, houve um ressurgimento das antigas tradições e práticas espirituais e curativas. Milhares de mulheres e um número crescente de homens de diversos países da Europa, das Américas e da Oceania, educadas nas religiões bíblicas (católica, protestante, ortodoxa, evangélica etc) e judaica, privadas do simbolismo do sagrado feminino durante séculos de supremacia patriarcal, estão agora descobrindo e praticando rituais das antigas culturas matrifocais. Lentamente, mas de modo cada vez mais evidente e presente, a Grande Mãe está ressurgindo do seu ocaso milenar, despertando consciências e renovando as esperanças nas mudanças planetárias e na integração e harmonização a humanidade com a Natureza e o Universo.
A espiritualidade feminina é um retorno do ser humano para a Deusa, o princípio criador feminino; é o crescente reconhecimento da Terra e da mulher como partes Dela, imbuídas da Sua sacralidade. A Deusa é representada em todo ato de criação, da Natureza ou da vida feminina, na eterna roda de nascimento, crescimento, florescimento, amadurecimento, declínio, morte e renascimento, na dança mutável das estações, nas fases da Lua, na trajetória anual do Sol. Seus ciclos são vividos pela mulher ao longo da sua vida, nas alegrias da infância, no despertar da sexualidade, no ato de dar à luz e amamentar ou no ato criativo de parir novas ideias e projetos, no recolhimento sábio da menopausa, na aceitação da morte e na fé na reencarnação. Eram as fases e os ciclos da Natureza e da mulher que eram celebrados nas comunidades e sociedades antigas como os pontos de mutação na Roda do Ano e da Vida.
A Deusa é a Grande Mãe, cósmica, celeste, telúrica e ctônica, que dá e tira a vida, eterna Criadora, mas também Ceifadora e Regeneradora, a Tecelã Divina, que entrelaça e conduz todas as forças da Terra e do Cosmos. Na sua extensa e variada tessitura, tudo está interligado e é interdependente, pois aquilo que afeta um dos fios se repercute vibratoriamente em toda a teia cósmica.

(arte de Vicki Tsai)

A Deusa é uma força imanente e permanente em tudo, onipresente e abrangente do Todo; diferente da figura celeste e longínqua do Deus, Ela impregna cada ato de criação e nutrição com Sua essência, por ser o Seu corpo a própria Terra.
O significado básico da Tradição da Deusa é o reconhecimento da energia divina feminina como uma força benevolente, criadora e criativa, de fortalecimento e sustentação das mulheres, as quais podem utilizá-la para proteger, mudar e melhorar suas vidas, sem precisar do amparo de figuras salvadoras masculinas. Citando a escritora e teáloga (é um termo criado pela escritora Noemi Goldberg em 1971, partindo da palavra grega Thea, Deusa, como um equivalente para o termo masculino teologia, portanto, teAlogia é o estudo da Deusa) Carol Christ: "A real importância da Deusa é a anulação do poder dos símbolos patriarcais masculinos sobre a psique e a alma feminina". Ao longo de milênios, criados, fortalecidos e enraizados, os símbolos do Deus Pai tornaram-se argumentos e leis para inferiorizar, dominar, oprimir, explorar e até mesmo matar as mulheres.
Na Tradição da Deusa, a liberdade de escolha é um tema central, mas essa liberdade deve ser acompanhada da conscientização das responsabilidades que decorrem das ações e escolhas pessoais. A mulher consciente da sua essência sagrada irá agir e escolher aquilo que precisa ou deseja guiada pela sua consciência, sem ter a ameaça do "pecado" ou do "castigo" como freio do seu comportamento. Ao se perceber como uma representatividade da Deusa na Terra, ela se preocupa com o bem-estar alheio, pois sabe que a sua liberdade termina onde começa a do próximo, e que a lei universal de ação e reação é o único constrangimento espiritual, moral e ético que deve nortear seu comportamento. As leis da Deusa são as leis universais que respeitam acima de tudo a preservação de toda a vida e a harmonia do mundo natural. As mulheres que praticam os ensinamentos dessa tradição sabem da responsabilidade que têm de contribuir com o restabelecimento do equilíbrio, dentro e fora de si mesma, no nível pessoal e coletivo, no micro e no macro. Somente assim poderão ter paz interior, sabendo que no seu habitat e no mundo em que vivem reinam a paz e a harmonia. A ênfase da espiritualidade feminina está na criatividade e responsabilidade individual, na contribuição que cada mulher traz para o bem de todos, sem privilégios de classe, raça, idade ou escolaridade. Cada mulher é única na sua essência e traz dentro de si uma centelha da sagrada chama da Deusa.


A espiritualidade feminina é um caminho para a expansão da consciência, com enfoque multirracial, pancultural e internacional, que vira o empoderamento das mulheres, fornecendo-lhes imagens sagradas femininas, rituais e símbolos adequados para preencher suas necessidades específicas, descritas a seguir.
Celebram-se os Mistérios do Sangue, ritualizam-se transições e mudanças, festejam-se conquistas e vitórias, em uma conexão permanente com a Fonte Criadora, em comunhão com a Natureza e em círculos de irmandade solidária e amorosa.
Proporcionam-se assim novas maneiras de aceitação e transformação dos desafios e dificuldades, de comemoração de sucessos e realizações com rituais belos e tocantes, entremeados com danças, canções e poemas.
Resgata-se a sabedoria ancestral, ao reverenciar o legado criado e mantido ao longo do tempo pelas mulheres da antiguidade, apesar das perseguições religiosas e sociais e as condenações às fogueiras da Inquisição. Recuperam-se as antigas práticas de cura natural e as cerimônias e culto dos ancestrais.
Reafirmam-se as verdadeiras tradições sagradas femininas, preservadas em mitos, lendas, práticas nativas, e se criam novas formas de manifestação dos dons artísticos, artesanais, musicais e literários femininos, em uma permanente busca de cura, pessoal e coletiva, para assim contribuir com a cura e regeneração planetária.
Comemoram-se as passagens e transformações da vida feminina, vistas não apenas pelo ângulo biológico, mas como parâmetros simbólicos de mudança em todos os níveis (psicológico, emocional, espiritual, além do físico) e como etapas na evolução da alma. Ao celebrar esses ritos de passagem, alcança-se uma unificação e harmonização de todos os aspectos do ser feminino, curando-se antigas feridas, perdas, dores, bem como alegrias, realizações e conquistas. A atitude de reconhecer e honrar essa integração permite a plena aceitação do poder feminino e o seu uso consciente para melhorar a vida, individual e coletiva.
Portanto, a espiritualidade feminina é também um caminho de resgate e afirmação dos valores sagrados da Terra, da Natureza e da mulher. O seu objetivo é promover à reverência à Natureza, a interdependência entre todos os seres da criação, o respeito pela vida, a irmandade e a solidariedade entre as mulheres. Ela visa o direcionamento da energia grupal em ações e atitudes ecológicas, educacionais e comunitárias, que contribuam para a transformação de valores, hábitos e mentalidades atuais, e restabeleçam o equilíbrio, a preservação e a pacificação da Terra.

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Essa é uma série dividida em 5 partes sobre a espiritualidade feminina e as origens da religião da Deusa, baseadas no livro "Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas", de Mirella Faur.
Leia a segunda parte aqui.



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