28/06/2016

[A Espiritualidade Feminina] O Retorno à Deusa #4

(arte de jessadilla)

Essa é uma série dividida em 5 partes sobre a espiritualidade feminina e as origens da religião da Deusa, baseadas no livro "Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas", de Mirella Faur.
Leia aqui a primeira parte, a segunda aqui, e a terceira aqui.

O Dualismo

Em oposição à antiga cosmologia da Deusa, que afirmava a unidade e harmonia entre vida e morte, começo e fim, refletidos nas suas facetas de Doadora, Ceifadora e Regeneradora da vida, a teologia cristã impôs o dualismo.
Enquanto Deus é uma força espiritual e transcendente, a Deusa é imanente e permanente, presente em todas as formas, energias, seres e ciclos naturais. A visão dualista, hierárquica e patriarcal preconiza a superioridade de uma polaridade sobre a outra, criando assim o antagonismo entre elas: espírito/matéria, mente/corpo, racional/intuitivo, espiritual/sexual, homem/mulher.
A Tradição da Deusa considerava a alternância e complementação das polaridades e elementos como uma realidade natural; porém as novas concepções patriarcais criaram a cisão e oposição entre forças e energias, antes integradas na multiplicidade dos aspectos da Grande Mãe. As antigas culturas matrifocais e geocêntricas honravam e celebravam igualmente a luz e a sombra, o dia e a noite, o Sol e a Lua, a vida e a morte, o espírito e a matéria, o homem e a mulher, pois tudo fazia parte da criação divina. Na visão dualista e patriarcal, houve uma distribuição desigual de valores; tudo o que era bom, nobre, valioso, luminoso, benéfico, coerente, fixo, racional e mensurável foi atribuído ao princípio masculino e aos homens, criados à semelhança do Deus imutável e transcendente. As energias mutáveis da Natureza e da mulher tornaram-se sinônimos da imperfeição, do perigo e do instinto selvagem e irracional, que devia ser dominado e controlado. As mulheres foram associadas à escuridão, ao pecado, ao mal. à luxúria, à irracionalidade, à impulsividade, à imprevisibilidade, à inconstância e a todos os "perigos" carnais e sexuais.
Apesar das tentativas dos sistemas religiosos e culturais de extinguir os vestígios dos cultos e da simbologia da Deusa, podemos discernir imagens e costumes que sobreviveram nos mitos e nos folclores e que foram assimilados pelo cristianismo. Apesar de transformada em traidora do seu sexo, Athena era honrada como padroeira da cidade de Atenas no seu simbolismo oculto de "Senhora da Rocha" (onde está a Acrópole, seu antigo templo, símbolo da força e do poder da cidade), da oliveira (símbolo da paz) e dos seus animais de poder (a coruja e a serpente), totens das deusas pré-cristãs. Segundo a mitologia grega, as mulheres atenienses perderam os direitos de cidadania porque, na fundação da pólis, elas haviam votado em Athena para nomear a cidade. Para apaziguar a ira do furioso Poseidon, deus dos mares, que concorria com a deusa, as mulheres foram condenadas a viver à sombra de seus amantes e maridos. O fato é que logo depois, na Grécia antiga, com exceção de Esparta, as mulheres não tinham mais direitos políticos ou civis, isto é, não eram cidadãs. A função das mulheres era a de esposas. Deveriam permanecer sempre ocupadas com o tear e os cestos de lã, como a lendária Penélope, que, na Odisseia de Homero, passou anos a fio à espera de Ulisses, reafirmando diariamente sua fidelidade ao marido ausente em função da guerra.
Os homens perderam a votação por haver mais mulheres na polis, resultando na vitória de Athena. Revoltados, tiraram a cidadania da mulher, colocando-a no mesmo patamar de escravos.



Mesmo vulgarizada, Afrodite continuou a ser louvada como "A Mãe dos seres vivos" nos seus hinos e nos poemas de Safo.
No México, o templo da Virgem de Guadalupe foi erguido na colina consagrada à deusa pré-asteca Tonantzin, enquanto o fogo sagrado da deusa irlandesa Brigid continuou a ser zelado pelas freiras de Kildare. As igrejas e fontes dedicadas a Brigid na sua adaptação cristã como santa mantêm vivo o simbolismo da Deusa até os dias de hoje. As datas das antigas festividades pré-cristãs da Roda do Ano permanecem nas datas e costumes cristãos dos equivalentes (Dia de todos os mortos, natal, páscoa, festa junina etc), bem como a adoção de várias deusas como santas (Ana, Helena, Irina, Lucina, Úrsula).
Nos primórdios do cristianismo, a presença e a participação das mulheres eram incentivadas por Jesus, cuja companheira e colaboradora Maria Madalena teve um papel proeminente, junto a outras seguidoras na divulgação e sustentação da nova fé, que promovia e abençoava o amor e a igualdade entre todos os seres. No entanto, à medida que a doutrina cristã evoluiu de um pequeno culto de judeus "heréticos" para uma instituição hierárquica e um sistema religioso patriarcal, aumentou a relutância masculina em aceitar a presença igualitária de mulheres, o que levou à exclusão dos serviços religiosos e ao repúdio de Maria Madalena. Segundo a mentalidade judaica, as mulheres deviam ser silenciosas e obedientes, acatando a autoridade paterna - divina e humana -, sem direitos, apenas com obrigações e deveres. Declaradas responsáveis pelo pecado original e por todos os males do mundo, deviam ser punidas eternamente pela transgressão de Eva e por não terem nascido homens, criadas à semelhança do Pai. Consideradas seres inferiores, "desprovidas de alma", elas eram vistas como "receptáculos do esperma" para gerar filhos varões e "caixinhas para o prazer masculino".

(fotografia de NonaLimmen)

O Culto a Maria

Apesar da postura misógina e androcêntrica (dominado por homens) da religião cristã, a antiga reverência à Deusa - perpetuada em segredo pelas mulheres no recôndito dos seus lares e nos seus encontros ocultos - ressurgiu de maneira camuflada e paulatina na Mariolatria, o culto a Maria. Na iconografia de Maria, permanecem símbolos, imagens, elementos e títulos das deusas da Suméria, da Babilônia, de Canaã e do Egito. Para os povos convertidos ao cristianismo pelo "poder da cruz e da espada", Maria representava a Mãe Divina, embalando o filho nos braços ou chorando a sua morte, as mesmas imagens dos mitos de Inanna, Ishtar, Ísis, Deméter. O nascimento milagroso de Jesus de uma mãe virgem assemelha-se ao de antigos deuses solares como Dumuzi, Tammuz, Adônis e Mithra, cuja comemoração era feita no solstício de inverno no hemisfério norte, data escolhida pelos patriarcas cristãos para as festividades de Natal e o suposto nascimento do Filho do Pai Divino, equivalente à Criança Divina pagã. O sofrimento de Jesus na cruz lembrava a autoimolação do deus Odin e o sacrifício anual dos deuses dos grãos, para alimentar com seu corpo e sangue a humanidade.
Datas cristãs se sobrepuseram ao calendário pagão das celebrações da Roda do Ano e o uso de batina pelos padres foi aceito como uma substituição dos mantos usados pelas sacerdotisas da Deusa. Assumindo vários títulos e símbolos das antigas deusas e preenchendo a sua ausência, Maia era a Mãe do Deus, a Rainha do Céu, a Estrela do Mar, a Mãe amorosa e benevolente que oferecia aos cristãos - principalmente às mulheres - um arquétipo feminino de compaixão, amor, proteção.
A opressão patriarcal, institucionalizada na Igreja e mantida pela força armada e política, foi suavizada pela presença de Maria, mesmo ela não fazendo parte da Trindade, a não ser de modo dissimulado, no misterioso termo do Espírito Santo. Dava-se assim continuidade às antigas trindades de Mãe-Pai-Filho ou da tríplice manifestação da Deusa (como jovem, mãe e anciã).
O culto à Maria ficou evidente na arte, nas inúmeras igrejas a Ela dedicadas (e erguidas nos antigos locais de culto à Deusa), nas orações e procissões, na fé de homens e mulheres que a Ela recorriam para mitigar de seus sofrimentos e aflições. No entanto, com a ampliação do seu culto e o retorno das mulheres à reverência de uma figura feminina, a Igreja sentiu-se ameaçada pelo poder crescente das mulheres que usavam o nome de Maria nas suas práticas curativas (como benzimento, uso de ervas, simpatias - lembranças da antiga arte pagã da magia natural).
Para acabar com essa ameaça e ao mesmo tempo beneficiar a incipiente classe médica, livrando-a da concorrência das parteiras e curandeiras, a Igreja Cristã criou a paranoia da "caça às bruxas", queimando, do século XIV ao XVIII, milhões de mulheres nas fogueiras da hedionda Inquisição e impregnando o mundo com o medo do terror e da morte. As culpas das mulheres julgadas, torturadas e condenadas como "bruxas" eram suas próprias existências, a continuidade do culto ao sagrado feminino - representado por Maria - e a sobrevivência do legado ancestral de sabedoria mágica e curativa. O odioso livro Malleus Maleficarum reforçou a tese bíblica do pecado da mulher e colaborou para uma matança indiscriminada de mulheres jovens e anciãs, feias e bonitas, com sardas ou verrugas, que tinham algum dom ou habilidade equivalente à "bruxaria", mesmo que fosse apenas ajudar mulheres a parir, curar crianças e animais ou aliviar a transição e o sofrimento dos moribundos. Uma vez acusadas, não havia como escapar às torturas e à morte, seguidas do confisco de bens, que passavam a ser propriedade da Igreja, que incentivava os delatores com recompensas. A alma coletiva feminina ficou para sempre marcada com o pavor de revelar conhecimento mágico e poder espiritual, pavor que explica os séculos de retraimento, em que as mulheres se deixaram anular, aceitando e se conformando, em silêncio e sem reagir, com a dominação e a exploração dos seus corpos e trabalho, os abusos e as violências perpetradas pelos homens. A Inquisição devastou a Europa, se espalhou pela América e somente em 1784 as torturas e as fogueiras foram abolidas.

(arte de Giovana Medeiros)

Movimentos Feministas

Apesar de todas as tentativas de aniquilá-lo, o poder feminino não sucumbiu. Em 1848 (64 anos após o fim do terror), surgiu a primeira onda do movimento feminista americano, marcada pela convenção de Seneca Falls, nos EUA, na qual foi discutida a discriminação sofrida pelas mulheres e redigida uma declaração reivindicando seus direitos. Os esforços e a dedicação de mulheres como Elisabeth Cady Stanton , Lucretia Mott, Matilda Gage, entre outras, chamaram a atenção da sociedade para a exclusão da mulher da vida religiosa, pública e social. Apesar do empenho, dos sacrifícios e da tenacidade das sufragistas, o direito a voto das mulheres foi concedido somente em 1920 nos EUA (no Brasil só em 1932) e as oportunidades de trabalho apareceram apenas com a carência de homens durante a guerra. No entanto, a desigualdade na remuneração continuava e, após o término da Segunda Guerra Mundial as mulheres tiveram que voltar para os seus afazeres domésticos, coagidas pela volta dos homens ao trabalho e a crise econômica.
Os livros de Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) e de Betty Friedan (The Feminine Mystique), em 1963, catalisaram o descontentamento das mulheres em relação à sua condição de inferioridade, dando início à segunda onda do feminismo. Entre 1960 e 1970, inúmeros grupos de mulheres, incluindo a National Organization for Women, procuraram derrubar as leis que perpetuavam a discriminação em assuntos de propriedade, trabalho, sexualidade e procriação, e buscaram amparo legal e material para mães solteiras; a remoção de barreiras legais, políticas e sociais na afirmação e expressão femininas e a legalização do aborto, entre outros temas. O movimento feminista procurava também ampliar a consciência da mulher e o reconhecimento do seu potencial inato, combatendo os estereótipos tradicionais de "passividade, dependência, fragilidade, incompetência e irracionalidade", e incentivando a luta contra abusos e violências, no âmbito doméstico, profissional, social e espiritual.
A terceira onda teve sua origem no meio da década de 1980; líderes feministas com raízes na segunda onda, como Gloria Anzaldua, Bell Hooks, Chela Sandoval, Cherrie Moraga, Audre Lorde, Maxine Hong Kingston, e diversas outras feministas negras, procuraram negociar um espaço dentro da esfera feminista para a consideração de subjetividades relacionadas à raça.

O Retorno à Deusa

Mãe antiga, ouço Teu chamado; Mãe antiga, ouço Tua canção; Mãe antiga, ouço Tua risada; Mãe antiga, provo das Tuas lágrimas.
(Canção dos círculos de mulheres norte-americanas)

Acompanhando a mudança no cenário político e profissional, as mulheres começaram a procurar um amparo religioso que promovesse os valores rejeitados pelo patriarcado e permitisse o fortalecimento da compreensão do poder espiritual feminino. Escritoras como Mary Daly, M. Esther Harding, Merlin Stone, Elinor Gadon, Monica Sjöo, Riane Eisler, Starhawk, Carol Christ, Charlene Spretnak, Christine Downing, Anne Bering e Buffie Johnson analisaram as religiões institucionalizadas e revelaram a existência - omitida no ensino convencional - das antigas culturas matrifocais e das imagens, estatuetas, mitos e cultos da Deusa. A gigantesca obra arqueológica e literária de Marija Gimbutas divulgou os inúmeros artefatos e estatuetas de deusas paleolíticas e neolíticas em diversos sítios da Europa e da Anatólia, comprovando o milenar culto a uma divindade criadora feminina e incentivando outras escavações, pesquisas e livros.
A corrente da espiritualidade feminina foi se ampliando e adquirindo importância mundial. Pequenas publicações e artigos sobre deusas despertaram o interesse de pessoas de mente aberta, enquanto ativistas espiritualistas como Starhawk, Zsuzsana Budapest, Shekinah Mountainwater e outras realizavam rituais abertos que reavivam memórias ancestrais e celebravam a Deusa de Mil Nomes. As mulheres - antes separadas e divididas pelos códigos e imposições das religiões patriarcais - passaram a se reunir e se apoiar na busca de uma nova manifestação de sua espiritualidade, que celebrasse a sacralidade da Terra, e da mulher, reconhecesse e honrasse seus ciclos e transições, incentivasse o reconhecimento da unidade e respeitasse a vida e a coexistência de todos os seres da criação.
As primeiras vertentes da espiritualidade feminina surgiram com os covens (grupos ritualísticos da tradição Wicca); os livros sobre a Deusa; o neopaganismo; o renascimento das tradições celtas, nórdicas e xamânicas; os estudos e as práticas de magia natural e a celebração pública dos solstícios, equinócios e plenilúnios. Também contribuíram os festivais musicais, as conferências sobre a Deusa, as feiras de arte e artesanato, os seminários, cursos, vivências. Surgiram novas terapias, baseadas na sabedoria ancestral, difundiram-se conhecimentos sobre yoga, meditação, fitoterapia, tarô, runas, cristais, deuses, anjos, fadas e gnomos. Livos famosos como As Brumas de Avalon, A Dança Cósmica das Feiticeiras, O Cálice e a Espada, A Grande Mãe, A Sacerdotisa do Mar e A Sacerdotisa da Lua.
Dezenas de trabalhos sobre arquétipos, símbolos, mitos e rituais das deusas de várias culturas preenchiam lacunas seculares e ofereciam alternativas religiosas sem dogmas ou hierarquias, incentivando a criatividade e cooperação femininas. Amparadas pelo embasamento arqueológico, histórico, cultural e espiritual, um número crescente de mulheres - educadas nas doutrinas e religiões tradicionais, repletas de simbologia e supremacia masculina - encontrou no movimento diversificado da espiritualidade feminina um caminho de liberdade de expressão. Esse novo e ao mesmo tempo antigo caminho fortalecia e reconhecia seu poder inato, suas percepções e habilidades psíquicas, bem como permitia e estimulava a sua participação nas práticas espirituais. As mulheres que encontram e vivenciam a religião da Deusa tornam-se suas sacerdotisas e senhoras de si mesmas, não mais meras espectadoras de serviços religiosos formais e rígidos ou simples obreiras a serviço do Senhor. A sacralidade feminina preenche os anseios da alma e nutre o psiquismo com energias positivas, permitindo a cocriação, o amplo envolvimento, participação e criatividade em diversos tipos de rituais.

Próxima e última parte aqui.



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