08/06/2016

[A Espiritualidade Feminina] O "Declínio" da Deusa #3.

(fotografia por Natalia Drepina)

Essa é uma série dividida em 5 partes sobre a espiritualidade feminina e as origens da religião da Deusa, baseadas no livro "Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas", de Mirella Faur.
Leia aqui a primeira parte, e a segunda aqui.

O "Declínio" da Deusa

Nesse período, começou um longo e insidioso processo de "destronar a Deusa" com o intuito de dar sustentação a legitimidade à nova cultura patriarcal e guerreira. As deusas das culturas paleolíticas e neolíticas foram rebaixadas do seu status de Mães Criadoras, Senhoras da Terra e da Natureza e passaram a se subordinar aos deuses da nova ordem. A religião deixou de demonstrar reverência à Deusa, à Terra, à Lua, à mãe, à mulher, à vida, e passou a demonstrar reverência ao céu, ao Sol, a Deus ao homem, ao pai, à morte e à guerra, e uma nova hierarquia espiritual foi estabelecida em sintonia com a estrutura social. A Deusa foi relegada a um plano secundário nos mitos, como mãe, esposa, amante ou filha de deuses dominantes. As Grandes Mães divinas como Cibele, Deméter, Gaia e Tellus Mater, cultuadas como Senhoras da Terra e dos seus ciclos e frutos, foram reduzidas a meras personificações de terra e da matéria.
Com o intuito de despojar a Deusa do seu antigo poder e da sua importância todo-abrangente de outrora, os mitos foram reescritos por patriarcas e profetas, de modo a enfatizar os poderes de Deus. À Deusa foram atribuídas - não mais a totalidade dos aspectos da criação -, mas somente as forças consideradas "escuras" e maléficas. Seus símbolos foram reduzidos, prevalecendo os dragões e as serpentes (que deviam ser vencidos e mortos por semideuses ou heróis), a escuridão, a noite, os pássaros agourentos, a Lua negra, os gatos pretos e todos os sinônimos de perigo e azar. Para invocar a benevolência dos novos deuses e justificar a matança de prisioneiros, escravos, mulheres e crianças "inimigas", novas lendas que estimulavam o derramamento de sangue humano surgiram para aplacar a ira divina e consagrar as terrar conquistadas, antes abençoadas pelo sangue menstrual das sacerdotisas e pelos ritos de fertilidade sazonais.
Os mitos de criação foram deturpados e deixaram de conter conceitos primordiais em que a Deusa criava o universo e a vida. O mito babilônio Enuma Elish, por exemplo, teve sua primeira versão reescrita entre 668-626 A.C. Esse mito descreve a morte de Tiamat, a Criadora primordial da religião suméria, Senhora do Oceano da Vida, pelas mãos do seu filho Marduk que usurpa seu lugar e poder e do seu corpo retalhado e cria a Terra, o céu, as estrelas, os planetas e os seres humanos, para servir aos deuses. Para justificar o crime, a Deusa é acusada de gerar monstros malignos - serpentes venenosas e dragões destruidores - para se defender dos planos de Marduk. O contador do mito tenta, por todos os meios, justificar o crime, implorando pela conivência dos ouvintes e descreve com detalhes o esfacelamento do ventre grávido da Deusa, pisoteado por Marduk depois de tê-lo esfaqueado. Dessa maneira, ao celebrar "o massacre da Deusa", incentiva-se a violência contra as mulheres, tanto nas guerras como nos lares, em caso de subordinação, e a necessária e recomendada punição.


(arte de Adrienne Rozzi)

O mito de Enuma Elish usa diferentes argumentos para desacreditar a Deusa, que são também usados em outros mitos adaptados por escritores motivados por crenças patriarcais. Primeiro, o mito contesta os atributos de Tiamat como Deusa Criadora, regente do nascimento, da morte e da regeneração, acusando-a de gerar monstros. Depois glorifica o herói que a mata e, em seguida, enaltece o ato de profanação do ventre materno, anteriormente reverenciado como Fonte da Vida. Esse mito era encenado anualmente nas celebrações babilônicas de Ano Novo, para reforçar sua mensagem ultrajante.
Existem vários mitos gregos que também descrevem o massacre da Deusa. No relato da conquista do templo de Delfos pelo deus Apolo, da autoria de Homero (700-600 A.C.), reconhece-se que os cultos iniciais eram de Gaia (a Terra), seguidos pelo de Phoebe (a Lua) e Themis (a ordem social). Delphos significa "ventre" e era considerado o local de nascimento do universo. Para justificar a conquista do templo da Deusa por um deus, descreve-se como Apolo teve que matar a fêmea de dragão, que guardava o altar de Gaia - uma "criatura bem nutrida, selvagem, cheia de sangue e causadora de males" (autorizando assim a crença masculina do poder maléfico e perigoso do sangue menstrual). Não contente com isso, Apolo profanou também a fonte sagrada da Deusa e violentou a ninfa responsável por ela. Posteriormente, esse ato de selvageria contra o dragão era encenado anualmente em um drama litúrgico chamado Septerion.
Em outro mito, numa versão patriarcal bastante conhecida, sobre o nascimento de Athena, Zeus mata a deusa Metis (cujo nome significa sabedoria) e a engole para depois parir Athena de sua cabeça, já adulta, totalmente armada e pronta para a luta. A própria Athena se declara convicta da supremacia e herança patrilinear por não ter nascido de uma mãe e por isso sendo totalmente a favor do pai e dos direitos masculinos, mesmo que isso prejudique as mulheres (nascidas de um ventre!). Com essa declaração Athena consolida uma "teoria" do deus Apolo segundo a qual "a mãe é parente do seu filho, apenas ama e é guardiã da semente nela colocada pelo pai" - afirmação repetida posteriormente por Aristóteles e que influenciou durante séculos as teorias científicas e religiosas da época.
A morte da Mãe é legitimada na trilogia Oresteia, escrita por Ésquilo, que apoia o direito dos homens de matarem as mães e filhas e enviarem os filhos para a guerra. No entanto, a mulher que mata o marido, mesmo que seja para vingar a morte da filha, deve ser julgada e condenada, até mesmo pelos seus filhos e parentes. Oresteia, que justifica o domínio masculino, tornou-se base clássica do sistema educacional europeu e continua sendo encenada e ensinada em universidades do mundo inteiro, sem nenhuma preocupação com o enaltecimento grego do matricídio.
Outras Deusas da antiga Grécia também foram despojadas do seu poder primordial nos mitos reescritos posteriormente. A poderosa Hera, uma antiga deusa tríplice da cultura pré-helênica e protetora das mulheres, foi transformada na ciumenta e vingativa esposa do poderoso Zeus. Pandora, cujo nome significa "a doadora" e representava os dons e riquezas de Gaia no seu aspecto de Anesidora (a deusa guardiã do pithos, o vaso sagrado destinado a conter os mantimentos e enterrar os motos, equivalente ao próprio ventre da Terra), é descrita como uma mulher leviana que abre uma caixa e libera todos os males no mundo. Esse mito distorcido é outra versão da difamação de Eva, herdeira das deusas ancestrais, criada junto com seu parceiro, Adão, do corpo da Mãe Terra, perseguida por ter comido da Árvore do Conhecimento (antigo símbolo da Deusa) e transformada na causadora dos sofrimentos da humanidade. A poderosa Afrodite, antiga Deusa Mãe dos países do leste do Mediterrâneo e cultuada em Chipre e outras ilhas antes da sua "chegada" na Grécia, é descrita "nascendo" dos genitais de Urano, castrado pelo seu filho Saturno e adquirindo assim significado eróticos e sensoriais, em vez dos seus atributos de criadora, soberana das águas, da beleza e do amor incondicional.

(arte de Amanda Scurti)

As inúmeras lendas e mitos das aventuras e conquistas amorosas de Zeus, nos quais ele seduz e estupra deusas, ninfas e mortais, são outra forma de reforçar o destronamento e a profanação do poder primordial da Deusa pelos novos deuses, seus filhos ou consortes.
Todo o simbolismo patriarcal dos mitos e da religião grega resultou da apropriação da cosmologia e predomínio dos deuses no culto imemorial das deusas locais.
Em outros mitos, deuses consortes ou filhos da Grande Mãe são promovidos a divindades criadoras, mas tão regidas pela dominação do masculino e vingativas quanto Jeová. Muito antes de criar a oração matinal dos judeus que diz: "Abençoado sejas Tu, Senhor, por não ter me feito mulher", a deusa criadora hebraica era Ashtoreth ou Anat, cujo consorte Tammus ou Baal foi se sobrepondo aos poucos à figura dela, até ser substituído pelo terrível Jeová. Os antigos deuses Ashtoreth e Baal foram considerados forças maléficas e perigosas, seus cultos proibidos e suas imagens destruídas, conforme recomendava o Velho Testamento.
Se analisarmos a história de Adão e Eva pelo prisma do "massacre da Deusa", descobrimos que, em Gêneses 2-3, Eva, cujo nome significava "vida", tinha o título de "a Mãe de todos os seres vivos" (Carol Christ, em Rebirth of the Goddess). As imagens da árvore, da serpente, da nudez da mulher fazem parte da iconografia da Deusa, e foram consideradas depois, pelo cristianismo, como fontes de sofrimento para a humanidade (devido ao "pecado" de Eva - comer da árvore do conhecimento e partilhar depois o fruto com Adão -, a humanidade foi punida com a expulsão do paraíso e a mulher, condenada a sofrer, para sempre, as dores do parto). O mito original da criação, em que a mulher e o homem foram criados juntos do mesmo barro, foi substituído por uma versão posterior, em que a primeira mulher Lilith revoltou-se contra a dominação de Adão, saiu do Éden e se refugiou às margens do mar Vermelho "criando incessantemente demônios que aterrorizavam crianças e vampirizavam os homens". Em seu lugar, Deus criou - da costela de Adão - outra mulher, Eva, que por isso era mais dócil; mesmo assim ela desobedeceu às ordens do Senhor e comeu o fruto do conhecimento, incentivada por Lilith metamorfoseada em serpente. Em outras palavras, a punição infringida aos povos pré-cristãos por continuar cultuando a Deusa e os seus símbolos foi a expulsão do Paraíso.
A tradição teológica cristã interpreta a história do Gênesis com base no dualismo clássico que associa a razão e o controle ao homem e a sexualidade e a irracionalidade à mulher, que se torna a origem do pecado e do mal, e considerada por Tertúlio "o portão do Diabo". A figura pura e obediente de Maria expia o pecado original, aceitando a missão imposta por Deus de gerar de forma imaculada aquele que iria salvar a humanidade. Mas Maria não devolve às mulheres o poder que elas tinham antes do "massacre da Deusa", reforçando pela suposição da sua virgindade o "ventre corrupto" das outras mulheres, que dão à luz de forma natural. A imagem de São Jorge matando o dragão confirma a aniquilação da Deusa pelo cristianismo. Os dragões e serpentes eram guardiões dos templos da Mãe Terra; o herói os mata fincando sua espada (símbolo fálico e patriarcal) no ventre volumoso e fértil dessas criaturas (a própria terra). Em certas gravuras, até mesmo Maria pisoteia a serpente enrodilhada aos seus pés, reforçando simbolicamente a definitiva derrota da religião da Deusa e sua substituição pela religião cristã.
A "invenção" do patriarcado foi a negação do ventre materno, do seu dom de dar a vida, e a afirmação de que o Pai é o único criador. Portanto, tudo o que Ele faz é justo e certo, pois somente Ele tem o poder. Repetida, encenada, escrita, falada, canada e ensinada por vinte séculos, essa inverdade fundamental tornou-se a verdade aceita e não questionada, devido ao temor do pecado e da punição.
Deus, no Velho Testamento, é sempre uma figura masculina e severa, e sua contraparte feminina 0 Shekinah -, adorada pelas mulheres como a Deusa, foi perdendo aos poucos sua importância até acabar sendo reverenciada apenas no culto do Sabbath, praticado de modo velado pelas mulheres em seus próprios lares. Para garantir o poder e a autoridade masculina, o deus hebraico impôs sua dominação sobre as mulheres e apagou qualquer vestígio dos antigos rituais da Deusa. Consideradas inferiores, as mulheres foram despojadas de quaisquer direitos, e seu único valor passou a ser a perpetuação da espécie e o trabalho doméstico. As poucas heroínas mencionadas no Velho Testamento atuam como "obreiras do Senhor" contra os inimigos da fé (ou seja, os que continuavam adorando a Deusa). Declaradas "seres sem alma e pecadoras" as mulheres não podiam estudar, nem possuir bens, pertencendo aos pais, que escolhiam seus maridos, seus novos senhores. Na viuvez, deviam acatar a autoridade do irmão, do tio ou filho. Até mesma nas sinagogas elas eram discriminadas, ficavam reclusas em um canto; o seu sangue menstrual era considerado impuro e perigoso, exigindo cuidados para que a mulher menstruada não tocasse nenhum homem, para não contaminá-lo ou enfraquecê-lo.

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Leia aqui a quarta parte!


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