30/05/2016

[A Espiritualidade Feminina] A Origem da Religião da Deusa #2

(fotografia por Stephanie Pearl)

Essa é uma série dividida em 5 partes sobre a espiritualidade feminina e as origens da religião da Deusa, baseadas no livro "Círculos Sagrados para Mulheres Contemporâneas", de Mirella Faur.
Leia aqui a primeira parte.

A Origem da Religião da Deusa

As origens da religião da Deusa se perderam na noite dos tempos; anteriores a qualquer uma das religiões atuais eram os cultos da Grande Mãe, reverenciada por milhares de nomes e atributos. Em todas as civilizações antigas existiu um culto à Mãe Criadora e Mantenedora da Vida. Suas representantes humanas - as mulheres - eram honradas e respeitadas pelo seu dom milagroso de gerar a vida em seu ventre e nutri-la com o leito dos seios.
Os mais antigos mitos da Criação descrevem a organização do caos e a formação da vida como atos conscientes e amorosos de uma Deusa Mãe. Esculturas e imagens do período Paleolítico e Neolítico representam o sagrado ato de geração e nutrição na forma de mulheres, cujo corpo guarda e revela os mistérios do ciclo da vida, morte e renascimento. Essas imagens expressam conceitos cósmicos considerados de natureza feminina e contidos em uma rica e variada simbologia. Esses conceitos constituíram a fundação sobre a qual se ergueram muitas culturas antigas.

Presentes em nossas memórias atávicas e na nossa imaginação mítica durante milênios, os registros soterrados e esquecidos de uma deusa primordial estão voltando à luz - do Sol e da nossa consciência - por meio das descobertas arqueológicas e dos estudos antropológicos, sociológicos e históricos do século XX. A descoberta e o estudo de artefatos pré-históricos estão mudando a interpretação do processo evolutivo e religioso da humanidade, além de permitir o afloramento das nossas lembranças. Do ponto de vista simbólico, imagens das deusas emergindo das entranhas da terra anunciam o ressurgimento da Deusa e são um chamado para que nos lembremos do passado e efetuemos uma mudança no nosso modo de pensar. A "redescoberta da Deusa" provocou uma reflexão sobre a importância das deusas e das mulheres na origem e na evolução histórica, cultural e espiritual da humanidade. Não foi a Deusa que se afastou de nós, fomos nós que a relegamos ao esquecimento, interrompendo seus cultos e negando sua existência.
Como atestam milhares de estatuetas de mulheres grávidas, amamentando, segurando filhos no colo ou dando à luz, confeccionadas em pedra, argila ou osso e encontradas em vários lugares, desde a Sibéria até Creta, Malta e a atual Espanha, o poder misterioso feminino, que gera a vida em seu corpo, foi o cerne das primeiras experiências religiosas. Nas paredes de grutas, gravações do período Paleolítico (70 a 30 mil anos atrás) reproduzem cenas de vida (mulheres ou animais parindo) e morte (batalhas ou homens caçando). As ossadas, enterradas em posição fetal e tingidas com pigmento vermelho, mostram a crença no renascimento do ventre da Mãe Terra, representado pelas grutas e fendas na terra. Os povos paleolíticos consideravam as grutas como o útero da "mãe dos vivos e dos mortos", e nelas realizavam seus rituais de fertilidade (para propiciar a caça) e ritos de nascimento e morte.
Em 10.000 e 8.000 A.C., terminou a última era glacial e as condições climáticas se tornaram propícias para o desenvolvimento das sociedades e culturas neolíticas. Esse período, conhecido também como a Idade da Pedra Polida (lembra das aulas de história no colégio?), é considerado o berço da agricultura, da criação e domesticação de animais e das artes manuais. Como as mulheres eram responsáveis pela preparação dos alimentos durante o período anterior - da coleta (de raízes, sementes e frutos) - é fácil deduzir que foram elas que deram início à agricultura, ao lançar na terra as sementes dos frutos coletados. Os homens só assumiram um papel preponderante na produção agrícola, muito mais tarde, com a introdução do arado manual (e depois puxado por animais) e o cultivo de áreas maiores. A revolução agrícola e  a domesticação de animais proporcionaram bases estáveis para o assentamento humano e o desenvolvimento social e cultural das tribos, antes nômades.

(réplica da escultura Vênus de Willendorf, criada no período Paleolítica entre 25.000 a 20.000 A.C., e desenterrada em 1908, na Áustria)

Por meio do contato que as mulheres tinham com os seres sobrenaturais e a Deusa, elas também recebiam intuitivamente instruções para transformar as matérias brutas da Natureza em produtos úteis e mais elaborados. Foi assim que as mulheres "descobriram" como preparar o pão e a partir de semente e grãos silvestres amassados com pedras e como tecer e fiar o linho e a lã dos animais para fazer vestimentas e artigos domésticos. Foram elas que utilizaram o barro, a água e o fogo para modelar potes e vasos, trançaram galhos e cipós, cobertos com argila e cozidos em fornos primitivos, para assim criar a arte da cerâmica, cada vez mais aperfeiçoada. Desse período datam os vasos com seios e olhos, as estatuetas de Mães da colheita e doadoras de fertilidade, bem como os mitos sobre as deusas da Terra, as Tecelãs senhoras do destino, as Guardiãs das florestas e dos animais, as Protetoras das casas e dos caminhos, as Condutoras dos espíritos (para encarnar e desencarnar), as celebrações dos Mistérios femininos.
Segundo revelam os inúmeros símbolos, animais aliados e representações femininas descobertas e estudadas pela arqueóloga lituana Marija Gimbutas, durante os períodos Paleolítico e Neolítico, a Deusa era reverenciada como Mãe Doadora, Ceifadora e Renovadora da Vida. Conforme atestam as escavações de James Melaart em Catal Hüyuk e Hacilar, na Anatólia, as mulheres detinham um papel importante nas sociedades e na religião, tanto nos territórios que Marija Gimbutas chamou de "Europa Antiga" (no período entre 6.500 e 3.500 A,C,) como no Oriente Médio.
Em nenhum dos sítios europeus e asiáticos foram encontradas evidências de guerra, autoridade patriarcal ou divisão em castas, prevalecendo a simbologia e o culto da Deusa, a paz entre as comunidades e a presença ampla de mulheres nas sociedades. Escavações e estudos nesses lugares revelaram uma profusão de figuras, inscrições, estatuetas e objetos ligados ao culto de uma Deusa Mãe, bem como a existência de comunidades pacificas e matrifocais (centradas no culto da Mãe, divina e humana). Apesar de serem classificadas como "primitivas", as civilizações do Oriente Médio e do sul da Europa mostravam elevado nível de vida e refinamento artístico, comprovado pelos objetos de uso religioso ou doméstico encontrados nos cultos milenares das divindades femininas. Sítios arqueológicos de 7.000 anos A.C., na Anatólia, ou mais recentes (3.000 A.C.), em Creta e Malta, não continham nenhum tipo de fortificação, armas ou objetos bélicos; as cenas das inscrições descreviam sociedades pacíficas e igualitárias, centradas na reverência à vida, à beleza, à arte e ao amor.
A supremacia da Deusa no panteão e a reverência à mulher não implicavam numa dominação social ou religiosa feminina, muito menos em um sistema matriarcal; a sociedade era pautada em valores de parceria e distribuição igualitária de tarefas e bens. As culturas antigas eram permeadas pelo respeito e veneração à vida, pela união e interação em vez de violência, combate e competição. Sem parecer comunidades idealizadas por imaginações fantasiosas de hoje, essas culturas apenas refletiam a antiga crença na "teia cósmica" regida por leis naturais e pela coexistência pacífica de todos os seres, filhos de uma mesma Mãe. A linhagem era matrilinear, as comunidades eram matrifocais e geocêntricas, organizadas ao redor das mulheres e crianças e protegidas pelos homens. Como não havia casamentos monogâmicos nos primórdios das civilizações nem era possível conhecer a paternidade precisa, os nomes das crianças pertenciam à comunidade, assim como os depósitos de grãos e as provisões de comida; e as mulheres eram encarregadas da sua manutenção e cuidado.

(fotografia por marianna insomnia)

As mulheres conheciam os mistérios da vida e da morte (por vivê-los mensalmente nos seus ciclos menstruais, no ato de dar à luz e nos cuidados com os moribundos e doentes) e tinham o dom da cura (por conhecer as ervas e saber como usá-las). Devido à sua sensibilidade e percepção expandida, elas eram as mediadoras nos intercâmbios entre seres humanos e os espíritos da Natureza, os ancestrais e os seres sobrenaturais. Por isso, durante muitos milênios, foram elas as parteiras, benzedeiras, curandeiras, sacerdotisas e profetisas, encarregadas de realizar as festividades de plantio e colheita, os ritos de passagem, as bênçãos e as proteções, o culto dos mortos, as previsões e a reverência às divindades.
Os homens, por não serem os responsáveis pelo cuidado das crianças e dos animais, e pelo plantio, colheita ou preparação dos alimentos, tinham mais liberdade e movimento e percorriam longas distâncias para caçar, pescar e desbravar novos lugares para moradia.
A transição da sociedade de coleta para a de caça e conquista levou à criação de uma nova estrutura social, em que prevalecia a força física e a habilidade masculina de tirar a vida, em oposição a de gerar e cuidar dela. Enquanto os grupos de mulheres se reuniam para celebrar sua fase menstrual, seus partos e suas práticas espirituais e curativas, os homens começaram a criar seus próprios grupos, centrados nas demonstrações de habilidade e vigor físico (em lutas, na caça ou na domesticação de animais selvagens) e na celebração de suas façanhas heroicas (que persiste até hoje, com outras roupagens e motivações, mas baseada no mesmo conceito de competição e conquista).
Com a descoberta do seu papel na procriação, ignorado ate então e revelado pela criação de animais domésticos, houve uma mudança na mentalidade e na postura masculina. O antigo respeito masculino pela totalidade da criação, o temor e a reverência que sentiam diante do ato de dar a vida, a veneração da Deusa Mãe e a parceria com a mulher foram substituídos pelo orgulho de serem cocriadores, pelo poder, pela autoridade e pela dominação do mais forte. Além do antigo culto ao deus da floresta, da caça e da vida selvagem, começaram cultos dedicados à face ceifadora da Deusa e às divindades de batalha, guerras e morte. Os homens se tornaram cada vez mais conscientes e orgulhosos do seu poder de lutar, vencer, conquistar e tirar a vida, e passaram a competir, de maneira velada, com os "mistérios femininos" (rituais menstruais, partos, curas, contato com os espíritos) nos quais eram excluídos. Continuamente desafiados para provar suas habilidades e afirmar seu poder no grupo, os jovens eram treinados pelos adultos para demonstrar agressividade e instinto de dominação em ritos selvagens de passagem da infância para a adolescência; esses ritos envolviam competições, provações e incisões corporais com derramamento de sangue - um equivalente violento dos rituais secretos que celebravam a menarca das meninas.
O surgimento de armas cada vez mais potentes preparou o caminho para a ascensão de uma casta de guerreiros e, assim, as pacíficas comunidades neolíticas foram adquirindo características patriarcais e belicosas, típicas da Idade do Ferro. O desenvolvimento crescente da agricultura, depois da invenção do arado e da domesticação dos cavalos, requeria maiores extensões de terra, o que levou os homens a empreender incursões para apropriação dos territórios vizinhos e sangrentos combates entre invasores e invadidos.
Simultaneamente, começou uma migração maciça de tribos nômades indo-europeias, mongóis e semitas (povo hebreu), vindas do sudeste asiático e das estepes da atual Rússia, que provocou ondas sucessivas de conquista e subjugação dos povos do centro e do sul da Europa. Chamados de kurgos pela escritora e historiadora Marija Gimbutas, essas tribos compostas de habilidosos guerreiros montados traziam com eles, além do poder letal da espada, valores eminentemente patriarcais e cultos a deuses poderosos, senhores do céu, dos raios e trovões, da guerra e da morte.
Pouco a pouco os kurgos impuseram seu domínio aos povos autóctones europeus, subjugando suas comunidades agrícolas, matrifocais e pacíficas, desprovidas de fortificações e armamento. A institucionalização da guerra, da hierarquia patriarcal, da linhagem patrilinear, do sistema de castas e da apropriação de todos os bens pelos homens, levou à subordinação e dominação das mulheres, à escravidão e a decorrentes mudanças sociais, culturais e espirituais.
Surgiram os primeiros reis, que a princípio eram os próprios líderes militares, que usavam seus exércitos para dominar e controlar os povos subjugados. Os prisioneiros se tornavam escravos e as mulheres eram capturadas como troféus de guerra e passavam a servir como concubinas ou escravas. Os espólios de guerra oferecidos aos soldados como recompensa por sua coragem eram a riqueza material e cultural dos povos vencidos, o direito de saquear, queimar casas e lavouras e estuprar. Como as mulheres não participavam das guerras na mesma escala ou da mesma maneira que os homens (atividade contrária aos seus deveres e atributos de mães doadoras e preservadoras da vida), o seu poder social, cultural e espiritual, antes respeitado e honrado, declinou, cedendo lugar ao novo sistema dominado pelos homens e hierárquico, cujos valores e objetivos eram o domínio, a exploração e o extermínio pela violência.

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Leia aqui a terceira parte!


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